Como um antigo cabaré virou um novo começo da inovação em Manaus

Às margens do Rio Negro, o antigo centro de Manaus não é um lugar dos mais bonitos. Entre prédios abandonados e muitos outros que guardam história dos tempos do ciclo da borracha, mas não possuem a conservação merecida, é uma parte da cidade que se tornou marginalizada ao longo de décadas. É também onde fica o Teatro Amazonas, tradicional ponto turístico e um dos poucos pedaços da região que recebeu mais cuidado. Descendo algumas quadras, na direção do rio, em frente à uma praça e um gigantesco prédio do INSS, um outro prédio antigo chama a atenção. Mas de antiga só é mesmo a fachada, pois o interior é um espaço de empreendedorismo e inovação: é o Casarão da Inovação Cassina.

Inaugurado no final de 2020, o Cassina foi fruto de um investimento de aproximadamente R$ 8,7 milhões da prefeitura de Manaus. Ele ocupa o espaço onde originalmente existia um hotel, também chamado Cassina, fundado em 1899. Depois, nos tempos de decadência da região, o suntuoso edifício se tornou uma pensão, e logo após virou um cabaré. Fechado desde os anos 60, do prédio histórico só sobrou a parte externa: ao longo do tempo o interior virou escombros e foi tomado por vegetação.

Passando a fachada do prédio e pisando adentro, dá pra ver que não é um local que remete ao passado. Uma arquitetura simples, salas modernas e equipadas para reuniões, eventos e trabalho remoto. Com essa estrutura, o espaço vem criando mecanismos para estimular o ecossistema de inovação na capital amazonense.

Em seus três quatro andares, o local recebe eventos de empreendedorismo, abre suas salas de reunião para que startups conveniadas possam fazer apresentações e, mais recentemente, iniciou um programa voltado à troca de experiências e fomento de novos empreendedores com cursos gratuitos.

“De certa forma, este programa é o começo do Cassina“, avalia Fábio Araújo, gestor do espaço, em entrevista ao Startups. Apesar de ter sido fundado no final de 2020, a crise trazida pela pandemia à cidade fechou as portas do local até a metade de 2021. Chamada de Mais Inovação, a iniciativa já rendeu a criação de quatro startups em suas quatro turmas até agora.

“Estamos preenchendo uma lacuna, que é de formação de novos empreendedores, mostrando à população o que de fato é uma startup, uma comunidade de empreendorismo, como validar um produto. Queremos mostrar às pessoas que isso não é algo de outro mundo, que não é preciso ser o Tony Stark para incluir inovação em seu negócio”, explica Cláudia de Oliveira, community manager do movimento I9 Manaus, que coordena o Mais Inovação em parceria com a Secretaria Municipal do Trabalho, Empreendedorismo e Inovação (SEMTEPI) de Manaus, repartição que gerencia o Cassina.

Claudia também é representante do Jaraqui Valley, comunidade de inovação que vem há um bom tempo criando suas ações de fomento ao empreendedorismo, e que também utiliza o Cassina para realizar algumas de suas ações.

Cláudia de Oliveira, do I9 Manaus, e Fábio Araújo, gestor do Cassina

Atualmente, o casarão tem como seu principal foco de atuação estes eventos de mobilização e formação, em um esforço para reaproximar as pessoas do centro. “É uma região há muito tempo mal-vista pela população e queremos mudar isso. Queremos as pessoas reabitando e revitalizando o perímetro do Cassina em torno deste propósito da inovação”, explica Fábio.

Parte de um plano maior

Conforme explica Fábio, o Casarão da Inovação é a primeira manifestação física de um plano bem maior da prefeitura local. No início de 2020 foi criada a Associação do Polo Digital de Manaus (APDM), que desenhou para o centro o plano de se tornar o distrito de inovação da cidade.

O projeto tem como inspiração um case já bem conhecido nacionalmente: o Porto Digital do Recife. Inclusive, um dos cérebros por trás da iniciativa recifense foi trazido para Manaus. Cláudio Marinho, um dos criadores e conselheiros do Porto Digital, foi contratado como consultor pela prefeitura para ajudar na revitalização do centro histórico e na criação do distrito de inovação tecnológica. Além disso, o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (CESAR), que é uma das organizações âncora do Porto Digital, também é integrante da APDM.

Para dar gás ao plano de revitalização, o perímetro no entorno do casarão ganhou incentivos fiscais (benefícios no ISS e IPTU) para empresas que se sediarem na região. Segundo o Subsecretário Operacional da SEMTEPI, Gustavo Igrejas, empresas já estão em conversas com a prefeitura para se estabelecerem por lá.

“Até a metade do ano que vem, esperamos já ter um bom número de empresas na região, e pelo menos uns 4 institutos com unidades instaladas por lá.”, afirma Gustavo. Ele aponta que outras obras importantes também serão decisivas para a revitalização, como um novo prédio mirante na ilha de São Vicente, e a mudança de prédios da administração municipal para a região central da capital.

Gustavo Igrejas, subsecretário operacional da SEMTEPI. Foto: divulgação

Um desejo da secretaria é também pleitear junto ao Governo Federal a cessão do tal prédio do INSS que falei no começo do texto, que fica bem na frente do Cassina. “Eles só utilizam alguns andares, e poderíamos revitalizá-lo para ser um espaço importante em nosso projeto”, afirma o subsecretário.

Por questões legais, o Cassina não permite a residência de startups em seu espaço, uma limitação que, segundo Fábio, é algo que a SEMTEPI quer endereçar em breve. “Estamos avaliando alguns prédios próximos ao casarão para a criação de um local para que startups possam alugar espaços acessíveis e ter seus endereços fiscais”, destacou o gestor.

Para Gustavo, o novo começo sinalizado pelo Cassina servirá para apontar novos caminhos de inovação e empreendedorismo. Segundo o subsecretário, desde a criação da Zona Franca, o ecossistema de inovação da capital se desenvolveu ligado à indústria, por meio dos institutos e da legislação local, que determina que 5% da Zona Franca deve ser reinvestido em pesquisa e desenvolvimento.

Segundo o secretário da SEMTEPI, a visão da APDM é expandir o ecossistema já forte em função da Zona Franca em novas direções, fomentando também as ideias fora deste modelo. Ele cita que o Porto Digital como exemplo, já que ele representa cerca de 10% do PIB da capital pernambucana, mas reconhece que é um longo caminho até Manaus atingir uma meta assim. “É um trabalho que o Casarão não vai fazer sozinho, e não acontece da noite pro dia. É apenas o 1º estímulo”, avalia Gustavo.

Descobrindo a inovação

Na nossa visita ao Cassina, tivemos a oportunidade de conhecer um dos negócios que nasceu dos cursos realizados no espaço. Fundada pela venezuelana Lis Carolina Martinez, uma ex-jornalista que encontrou seu novo lar na capital amazonense, a Arepa Com Tucumã foi concebida como um serviço de catering para eventos. O nome – e a ideia do negócio – vem da combinação da arepa, um tradicional salgado recheado venezuelano, com o tucumã, uma fruta local muito utilizada em lanches como Xis Caboquinho, sanduíche que é praticamente um patrimônio cultural dos manauaras.

Porém, com as lições aprendidas nos eventos sediados no Cassina, a ideia de Lis em combinar sabores amazônicos e venezuelanos começou a se expandir, inclusive trazendo inovação para o modelo de negócios. “Quisemos inovar desde o início, da mistura das comidas até o serviço”, destacou Lis. Atualmente, a Arepa Com Tucumã está desenvolvendo uma plataforma própria para o gerenciamento de seus pedidos – e também trazendo responsabilidade social.

De acordo com a fundadora, à medida que aumentam os pedidos da empresa, a plataforma servirá para terceirizar e gerenciar a produção dos salgados da startup. Envolvida em projetos sociais, Lis decidiu trazer a comunidade de mulheres venezuelanas que hoje vivem em Manaus, muitas delas em estado de vulnerabilidade, para serem suas fornecedoras.

“Além de cadastrar nossas fornecedoras, na plataforma criamos fichas técnicas para padronizar os alimentos. Quando recebemos um novo pedido, lançamos na plataforma uma licitação digital para nossa base e a melhor oferta é contratada”, explica. Segundo a empreendedora, as colaboradoras também recebem treinamentos para fazer parte da operação.

Lis Carolina Martinez (à direita), fundadora da Arepa Com Tucumã, com uma de suas colaboradoras

“Com este modelo, consigo crescer minha produção sem precisar investir alto em cozinha e sem deixar de olhar para o lado social. Temos mais de 70 mil imigrantes venezuelanos em Manaus, e a maior parte são mulheres. Estamos criando oportunidades para um bom número delas”, avalia.

Ainda no início (o empreendimento foi fundado em janeiro), a Arepa Com Tucumã está aos poucos aumentando seu volume de pedidos. Apesar de não dar números, Lis revelou que já está mudando o CNPJ de MEI para Microempresa, em função do crescimento na receita. Mas a fome da startup é grande: com a plataforma, o plano é também chegar a outros estados. “Temos muitas venezuelanas em Roraima, por exemplo. É um mercado que nós podemos aproveitar, por que não?”, indaga Lis, com um sorriso no rosto.

Fonte: Startups

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