É como se o alicerce de uma casa fosse malfeito, faltassem tijolos na parede ou se as vigas do prédio estivessem tortas. As analogias de especialistas mudam, mas querem dizer o mesmo: quem não tem base sólida em matemática é incapaz de construir conhecimento de forma adequada na área.
As consequências da falta de formação adequada são diversas. Há prejuízo e desmotivação para a aprendizagem nas escolas, algo que se transforma em uma barreira ao ingresso no mercado de trabalho, demandante de profissionais com capacidades matemáticas. A docência também é prejudicada, porque os interessados em Ciências Exatas não conseguem assimilar conteúdos das licenciaturas, abandonam cursos e procuram áreas com “menos matemática” no Ensino Superior, dizem os estudiosos ouvidos por GZH.
No Estado, a precariedade da compreensão da matemática é observada nos resultados das provas do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do RS (Saers) de 2022, divulgado no último dia 12. O resumo dos dados estaduais é que quanto mais tempo os alunos têm na escola, piores são as notas obtidas por eles
Primeiro emprego
A formação insuficiente em matemática é uma barreira enfrentada por quem busca o primeiro emprego, segundo o Instituto PROA, um projeto que cria oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional para jovens de baixa renda de escolas públicas. O trabalho, conduzido no Rio Grande do Sul e outros Estados brasileiros, é uma ponte para inserir pessoas entre 17 e 22 anos no mercado de trabalho. Isso faz com que o projeto tenha contato com alunos que estão na 3ª série do Ensino Médio ou quem concluiu o ensino básico.
— Muitos deles, com 20 anos, nunca viram coisas de lógica nem mesmo Excel. É inacreditável que estejam tão distantes de ferramentas básicas da maioria das empresas atualmente. Não saber matemática impede a pessoa de trabalhar, de participar de um processo seletivo — comenta Ricardo Carvalho, gerente de operações do PROA.
Para participar da iniciativa, os alunos devem fazer provas de português e matemática. A exemplo da avaliação estadual citada nesta reportagem, a maioria dos candidatos que busca o projeto é reprovada quando testadas as capacidades matemáticas.
— A ideia não é descartá-los (com a prova), mas que tenham um conhecimento mínimo para absorver o conteúdo que vamos passar depois. É assustador o número de alunos nessa faixa etária que não consegue realizar o teste, e que faz mais de uma vez para que consiga ser aprovado. Hoje quase 70% reprova, ou seja, não acerta pelo menos sete questões — acrescenta Carvalho.
Aos aprovados, o PROA disponibiliza um módulo focado em raciocínio lógico no qual é trabalhado conteúdo básico de matemática. Autoconhecimento, planejamento de carreira, projeto profissional e comunicação também são oferecidos aos alunos durante três meses de forma online e gratuita.
A situação vivida pelo projeto não está distante da busca da indústria FCC por profissionais. A empresa de Campo Bom, na Região Metropolitana, que atua no setor químico, tem hoje 50 vagas disponíveis no Rio Grande do Sul e na Bahia. As exigências mudam para cada cargo, mas há uma constante: encontrar pessoas com conhecimentos básicos em áreas das Ciências Exatas.
— Temos visto muitos problemas em níveis que não esperávamos, desde analista sênior até posições gerenciais. Há bastante dificuldade em encontrar profissionais com capacidade lógica e numérica adequadas para o nível da função — resume Leandro Monteiro, gerente de recursos humanos da FCC.
A companhia tem clientes nos setores calçadista, construção civil, automotivo, higiene e saúde, metal mecânico, utilidades domésticas e recobrimento de superfícies, entre outros. O gerente de RH explica que profissionais com poucos conhecimentos matemáticos deixam de contar com características específicas, algo que prejudica a evolução dentro do mercado de trabalho e no dia a dia da empresa.
— Elas propõem menos soluções e inovação no seu dia a dia, justamente por não conseguirem enxergar o todo, as lacunas dentro de um processo de trabalho e operacional. Muitas vezes, não desenvolvem a capacidade de análise de algumas competências básicas de lógica. São pessoas mais passivas dentro do seu processo de trabalho — pontua Monteiro.
Boa base para o “prédio” da matemática
A história de Fabrício Carpes Carraro, 35 anos, é incomum no contexto brasileiro. Desde criança, o morador de Porto Alegre se interessa por atividades que têm relação com números: resolução de fórmulas, tabuada, jogos temáticos com soma, subtração, multiplicação e divisão. Ele conta que o pai, também “bom em matemática”, é uma de suas influências no aprendizado.
— Por mais difíceis que sejam os problemas, tu sabe que eles têm uma solução. Então tu vai quebrando a cabeça e chega em um resultado exato. Então, é isso que eu gosto na matemática.
O interesse no assunto fez Fabrício se formar em Engenharia Civil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) há 11 anos; hoje atua na Wolens Incorporadora. Presente na infância como diversão e curiosidade, a matemática é a ferramenta utilizada pelo profissional em obras de residências de médio e alto padrão na Capital.
— Um prédio mal dimensionado pode apresentar diversas manifestações patológicas, seja recalques de fundação, demonstrando diferença de nível de piso, vida útil reduzida, conforto reduzido, um gasto maior de luz e desperdício de matéria. Tudo envolve a matemática: a resolução de quanto aguenta cada laje, quanto suportam as estruturas para poder dimensioná-las, telhado, pilares, vigas, tamanho de janelas, qual é a espessura correta da parede que tem que ter correta. Não existe fazer uma obra sem a matemática — diz.
Mão de obra valiosa
A má-formação da capacidade matemática impede o aproveitamento de oportunidades na tecnologia da informação (TI), área que paga salários acima da média nacional e oferece oportunidades de crescimento. Um profissional tem ganho médio mensal de R$ 2,9 mil no país, segundo o site Glassdoor.
O valor pode ser mais alto em segmentos como programação, desenvolvimento de softwares e segurança da informação, por exemplo. O chamarisco financeiro frustra alunos pouco preparados que procuram ingressar no Ensino Superior, diz Alexsandro Marian Carvalho, professor das áreas de Física e Matemática na Unisinos e no Colégio Sinodal.
— A pessoa vê o salário médio da área e se projeta nele. No entanto, quando busca a formação necessária, encontra a barreira da falta de formação sólida em matemática. Então, ela foge das disciplinas mais avançadas e tenta áreas da TI mais tradicionais, o que torna sua carreira bem mais limitada, longe da parte de inovação, que paga mais. Fora isso, muitos acabam evadindo o Ensino Superior por baixo aproveitamento de matemática na Educação Básica — diz.
O professor da Unisinos analisa que para obter uma formação capaz de justificar um salário mais alto, o profissional precisa dominar áreas da matemática. Algumas delas são álgebra, equações, lógica proposicional, teoria de conjuntos, cálculo, probabilidade estatística, geometria, entre outros conteúdos vistos no Ensino Básico. Se portas se fecham àqueles sem base matemática satisfatória, oportunidades sobram aos que têm boa formação.
— Sou professor há mais de 20 anos e não lembro de bons alunos (em matemática) que não estejam ocupando as melhores posições de mercado hoje. Alguém com esse conhecimento é uma mão de obra valiosa, não só para a nossa “aldeia”, mas também para o mercado internacional — comenta.
A tendência é de que a TI siga como expoente no mercado de trabalho nos próximos anos, porque a humanidade deverá estar cada vez mais cercada de ambientes tecnológicos, afirma o Center for the future of work, da empresa norte-americana de tecnologia Cognizant Technology Solutions. Em um relatório, a iniciativa cita 21 profissões que devem ser criadas nos próximos anos na área; entre elas estão facilitador de TI, gestor de desenvolvimento de negócios de inteligência artificial e construtor de jornadas de realidade aumentada.
Já Matific, uma plataforma digital de ensino e aprendizagem para estudantes de matemática do Ensino Fundamental do país, cita outras profissões que serão necessárias nos próximos anos: cientista de dados, engenheiro de algoritmo, criptógrafo digital e professor de matemática, que será o responsável por ensinar a demanda crescente por profissionais com capacidades para preencher as vagas. Todas têm em comum a necessidade de bons conhecimentos na disciplina.
— É provável que a pessoa com boa formação em matemática tenha uma carreira de sucesso se seguir o caminho da tecnologia da informação. Ela terá poucos concorrentes e muitas portas abertas — conclui Alexsandro Marian Carvalho.
Início ruim compromete o desenvolvimento do aluno
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que define o conjunto de aprendizagens que todos os estudantes devem desenvolver na Educação Básica, diz o seguinte sobre a disciplina: “O conhecimento matemático é necessário para todos os alunos da Educação Básica, seja por sua grande aplicação na sociedade contemporânea, seja pelas suas potencialidades na formação de cidadãos críticos, cientes de suas responsabilidades sociais.”
— Quando um estudante aprende matemática, não está só aprendendo a somar, a subtrair, a dividir ou a resolver um problema: está também desenvolvendo toda uma lógica argumentativa, o raciocínio lógico-dedutivo. Independentemente de qual área (acadêmica) decida seguir, ele vai precisar da matemática. A matemática está em tudo, desde ir ao supermercado a usar a internet — diz Jaqueline Mesquita, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM).
A análise dos resultados do Saers de 2022 mostra uma tendência no Ensino Básico do Estado. Segundo o levantamento, quase 96% dos estudantes do 3º ano do Ensino Médio – último período da Educação Básica – de escolas públicas foram qualificados com conhecimento abaixo do básico ou básico.
As melhores notas em matemática foram alcançadas por alunos do 2º ano do Ensino Fundamental: 58,8% foram avaliados com conhecimentos adequados ou avançados (veja abaixo o que isso significa). Um abismo percentual separa esse resultado do que foi verificado no 3º ano do Ensino Médio, que teve apenas 4,3% avaliados com bons conhecimentos na matéria.
Os testes, que foram aplicados entre os dias 17 e 27 de outubro de 2022, tiveram participação de 336 mil estudantes das redes municipal e estadual. A prova segue a matriz de referência do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) para os componentes curriculares de Matemática e Língua Portuguesa e foi aplicada para os estudantes do 2º, 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e do 3º do Ensino Médio.
Em Porto Alegre, por exemplo, é possível contar nos dedos das mãos a quantidade de estudantes avaliados com conhecimentos avançados em matemática no Ensino Médio: foram seis em um universo de 4,2 mil, o equivalente a 0,1%. Os avaliados com conhecimentos básicos ou abaixo do básico representam 98% na Capital, dado ainda pior que o cenário estadual.
— No Ensino Médio, o aluno percebe as defasagens de quando ele não conseguiu acompanhar determinados conceitos no 6º, no 7º, no 8º ano. Então, não consegue conectar e aplicar conhecimentos, percebe que não sabe tudo o que precisa conhecer para levar adiante o Ensino Médio — explica Fabiane Noguti, doutora em Educação Matemática e coordenadora do curso de Matemática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Fernando Becker, especialista em Psicologia da Educação e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), usa um exemplo cotidiano para explicar a situação:
— A matemática é como um edifício: se você não construir bem os fundamentos, não vai poder fazer o térreo. E, portanto, não vai fazer bem o primeiro, o segundo, o enésimo andar. Nós vemos contrassensos nessa evolução. E isso compromete todo o processo de aprendizagem, porque temos alunos concluindo o Ensino Médio que não têm noções mais elementares do que a matemática é, como ela funciona e qual a sua utilidade na vida prática.
O professor defende mudanças na forma como a matemática é ensinada no Ensino Básico: diz que é importante uma “pedagogia ativa”, focada na resolução de problemas e que conversem com a rotina de quem aprende. Apoia também a alteração na metodologia na qual apenas o professor fala em sala de aula. O olhar para a formação do docente também tem peso nos maus resultados obtidos pelos alunos gaúchos, diz o autor do livro Epistemologia do Professor de Matemática.
— Cansei de conhecer alunos que optaram pela pedagogia porque não queriam um curso que tem matemática. Só que acontece o seguinte: são esses professores que saem da pedagogia que vão iniciar a criança na matemática. Então, nós temos um comprometimento na iniciação à matemática por pessoas que não têm noções elementares e, pior de tudo, não gostam da matemática — pontua.
E quando não conseguem “fugir” da matemática, é comum o abandono de cursos de exatas nos primeiros semestres. É o que indica um levantamento divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) em março, que avaliou dados de 17 licenciaturas no país. Em todos, o desempenho dos estudantes ficou abaixo de 50, em uma escala que vai de zero a cem.
A área de Ciências Exatas lidera o ranking das piores notas: o curso de licenciatura em Computação teve a média nacional mais baixa, 30,6, seguido de Educação Física (35,6), Química (38,3), Física (39) e Matemática (39,3). O maior índice de evasão é da licenciatura em Física, com desistência de 59% dos estudantes. Trata-se de um cenário com impactos, como lembra a coordenadora do curso de Matemática da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Fabiane Noguti.
— Esse é um drama brasileiro. Não temos conseguido atrair estudantes para os cursos de licenciatura, vemos aumentar o número de evasões. Esse aluno percebe que não gosta tanto de matemática ou que não quer ser professor, aí desiste do curso. Entrei em uma turma com 45 estudantes dos quais saíram oito formados, e temos mantido uma média mais ou menos assim. Há muitas desistências ao longo do caminho.
*Com informações do site Gaúcha ZH