Celebrando o pertencimento negro, as raízes e heranças, o Dia Nacional da Consciência Negra veio apresentar as populaçoes negras por meio das suas contribuições às sociedades, ressaltando esses saberes ora nas disciplinas escolares, ora transversalmente na sociedade. Para a historiadora Eva dos Santos, graduada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a inserção dos saberes negros africanos nos currículos escolares é um “trabalho de posicionamento político diário”.
“Eu sou totalmente contra essa ideia de que ‘ah, fiz lá um trabalho sobre capoeira, com uma aula sobre capoeira na história eu dei conta de trabalhar a temática étnico-racial das populações pretas’. A população preta não é só capoeira! A gente tem que começar também a parar com essa mania de achar que alguns símbolos de cultura são gerais para todo mundo. Estamos falando de um povo diverso e trabalhamos nesse sentido, nas formações continuadas e em todos os lugares.”
Como coordenadora pedagógica do Núcleo de Educação para Relações Étnico-Raciais da Secretaria Municipal de Educação do Estado de São Paulo, Eva destaca o papel da formação continuada para a descolonização não só dos currículos escolares, como também do pensamento racista entre os educadores. “Não precisa ser negro para tratar da temática racial. É um assunto que atinge toda a sociedade. Não há um trabalho acabado para lidar com isso, é uma ação contínua, entre elas, os materiais de apoio das Secretarias de Educação das Relações Étnico-Raciais, que não visam privilegiar uma população, mas melhorar a sociedade como um todo acabando com o racismo”, diz a educadora.
Devido a um processo de formação diferente para cada educador, Eva ressalta o quanto é necessário o trabalho da gestão escolar em fiscalizar se esse profissional negligencia alguns conteúdos escolares devido às suas crenças pessoais. “Existe a Lei que é justamente para trabalhar com a temática étnico-racial. Independente da crença pessoal do professor, ele não está ali para defender o que acredita, mas ampliar o conhecimento. Quando se fala de Oxum nas escolas, por exemplo, não se está fazendo propaganda de religião, mas apresentando a história das religiões e os saberes que ali existem”, destaca Eva ao relatar que muitas vezes os educadores reproduzem preconceitos ao omitir alguns conteúdos ministrados em sala de aula.
“Observar que alguns temas não são trabalhados em sala de aula por racismo religioso é um risco educacional que atinge diretamente os cidadãos que estão sendo formados. É preciso, a fim de impedir isso, apresentar que há um documento federal que determina que isso seja ensinado. A escola é laica e acompanhar o trabalho é essencial para garantir isso”, complementa a educadora.
Mais transparência
Maria da Glória lembra que alguns deles já estiveram em documentos como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Resolução 001/04) e no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, porém devem ser reforçados ou retomados.
A professora também é psicóloga e pesquisadora no campo da educação. Ela estuda as relações étnico-raciais na escola, inclusive com a participação no grupo de pesquisa “Raça, gênero, etnomatemática e culturas afro-brasileiras – relações étnico-raciais e diversidade de gênero na construção de uma epistemologia afro-brasileira e feminista nas escolas públicas de São Paulo”, da USP, e no grupo de estudos e pesquisas “Educação e Afroperspectivas” (CNPq), de natureza interinstitucional.
E entre alguns mecanismos que garantam a aplicação da lei 10.639/03, a educadora sugere, entre outras iniciativas, a criação de grupos de trabalho específicos em secretarias municipais e estaduais de Educação. “Nesse espaço, faz-se necessário ter metas mensuráveis de implementação, formas de monitoramento e fiscalização, além de participação deliberativa da sociedade civil, com universidades, movimentos sociais e associações educacionais”, recomenda.
Ela também destaca a importância da realização de formações específicas com gestores escolares e com os diferentes educadores dentro do ambiente escolar sobre a educação antirracista. Com isso, estará garantida a coordenação adequada e embasada das ações para a educação para as relações étnico-raciais. “Outro ponto importante é a obrigatoriedade da realização de ações contínuas e coletivas no projeto político pedagógico durante o ano letivo”, diz a educadora.
“Os mecanismos também passam pela obrigatoriedade da realização de disciplinas sobre educação para as relações étnico-raciais nas graduações de Pedagogia e nas licenciaturas, além da criação de mais vagas para cotas raciais e para Prouni em cursos superiores na área da Educação.”
Maria da Glória também defende a elaboração de material didático-pedagógico de apoio e também para uso dos estudantes adequado às diretrizes da educação antirracista, e definição de metas anuais de avanço com base no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e transparência ao divulgar os resultados delas.
A Lei 10.639/03 na prática
Para melhor compreender como a Lei 10.639/03 vem sendo aplicada nas práticas pedagógicas de algumas disciplinas, o Jornal da USP entrevistou professores da educação básica dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco:
Matemática
Para melhor compreender como a Lei 10.639/03 vem sendo aplicada nas práticas pedagógicas de algumas disciplinas, o Jornal da USP entrevistou professores da educação básica dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco:
Tratar da aplicabilidade da Lei nas práticas pedagógicas é um desafio. Sobretudo porque a história e cultura afro-brasileira possuem particularidades que transcendem diversas questões. Para o professor Julvan de Oliveira, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), é preciso quebrar o paradigma de que a população negra está na história somente em um lugar de submissão.
Seja na filosofia ou nas ciências exatas, para ele, é preciso lembrar que a sociedade brasileira é constituída por diferentes etnias ao longo da história. Assim, será possível interromper a reprodução de um pensamento, ainda, colonial. Oliveira acredita que “romper com o pensamento racista de que os povos originários ou afro-brasileiros são inferiores e que não possuem religiões, filosofias, saberes, é essencial”.
“Para além disso, também contribuem para a construção da identidade desses grupos”, complementa o professor. Para ele, não instituir esses saberes nos currículos escolares somente reforça uma ideia de algo inexistente na realidade: que há harmonia em tratar dos saberes de distintos grupos sociais. Na verdade, não é bem assim.
Já para William José da Cruz, do Departamento de Matemática da UFJF, as áreas exatas ainda divulgam muito pouco ou quase nunca as contribuições dos povos africanos e, devido a uma formação frágil na graduação, é possível que essa mentalidade seja reproduzida. “Nossas práticas estão ainda muito pautadas no eurocentrismo, como se o conhecimento tivesse a sua fonte originária, no caso da matemática, na Grécia e em outras partes da Europa. A tecnologia, os conceitos, as formas de escritas desenvolvidas pelos povos africanos ainda são muito pouco comentados nas salas de aula de matemática”, diz o professor com base no que vivenciou enquanto ministrava aulas na educação básica.
Ele ressalta que é possível estabelecer uma postura crítica a que tipo de ideia matemática está sendo ensinada. Recentemente, Cruz lançou o livro Experimentos Mentais – Uma Nova Metodologia Para o Ensino de Matemática, no qual traça formas de descolonizar o ensino da disciplina. No livro, ele propõe aos professores provocarem os estudantes a pensarem de onde surgiu os algarismos, 1,2,3… que nós usamos e como surgiu esse tipo de escrita. “Tudo isto para dizer que a base deste conhecimento tem origem, em certo aspecto, em África”, destaca o professor, ao pontuar que, embora haja um avanço de pesquisadores negros, como Gustavo Henrique Araújo Forde, em ciências matemáticas na atualidade, muitas vezes esse conhecimento não é divulgado, tampouco valorizado.
Cruz acredita que essa ideia em resumir os povos africanos à miséria faz parte do projeto político do racismo institucional. Segundo ele, a escola tem um papel imprescindível para que possa reverter essa ideia, assim, “ o conhecimento cria nuances para modificar o presente e construir um novo futuro. Por isso eu luto todos os dias para construir esta base. E é na formação de professores que podemos desenvolver essas percepções. Uma formação antirracista que acima de tudo não nega o conhecimento, que não mascara o passado, que valorize seu povo independente da cor da pele”.
Mostrando como isso é possível, a estudante Rayssa Russi, da Escola Estadual Dr. Ubaldo Costa Leite, localizada na zona norte de São Paulo, relata que aprender matemática a partir de uma perspectiva que não seja puramente numérica mudou sua forma de enxergar o mundo. “É difícil ver pessoas negras dando aula de exatas, só tive uma professora negra de matemática em toda a minha trajetória escolar. E ela despertou muita curiosidade em mim porque me fazia enxergar que é possível, sim, aliar a história da África com essa disciplina”, ressalta a aluna, ao contar que após a chegada do novo ensino médio ficou mais difícil conhecer a história e cultura afro-brasileira, porque somente português e matemática são disciplinas obrigatórias.
Português
Já para a educadora Debora Missias, graduada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, não há como negar: falta literatura afro-brasileira nos livros didáticos do ensino médio. Ela chegou a essa conclusão com base na pesquisa de mestrado intitulada O Ensino de Literatura Afro-Brasileira nos Livros Didáticos, que ela desenvolveu em estudos culturais pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade.
A educadora destaca que é preciso, sobretudo, repensar o modelo de educação que estamos desenvolvendo na sociedade. “O fato de a Lei 10.639 ter sido sancionada há quase duas décadas revela um problema profundo: a existência de uma lei não determinou que esse conteúdo alcançasse o material didático de maneira satisfatória e, provavelmente, também não alcançou a prática docente”, complementa a pesquisadora, que atualmente atua no mercado editorial.
Ciências
“A ciência nunca foi neutra”, é assim que a professora Maysa Sabino define a ciência. Formada em Biologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a educadora acredita que é preciso que as universidades compreendam que desenvolver uma educação antirracista é uma atitude coletiva, que deveria estar presente em todos os cursos de graduação, e não somente em algumas disciplinas.
A educadora destaca que é preciso, sobretudo, repensar o modelo de educação que estamos desenvolvendo na sociedade. “O fato de a Lei 10.639 ter sido sancionada há quase duas décadas revela um problema profundo: a existência de uma lei não determinou que esse conteúdo alcançasse o material didático de maneira satisfatória e, provavelmente, também não alcançou a prática docente”, complementa a pesquisadora, que atualmente atua no mercado editorial.
Atuando na educação básica, Maysa também destaca que por muitas vezes esse modelo de educação não consegue se desenvolver devido às pessoas que ocupam os cargos de poder do sistema educacional. “Se fizermos um recorte racial de quem são os gestores, coordenadores e diretores das unidades de ensino, teremos um perfil majoritariamente ocupado por pessoas brancas. Pessoas que não tiveram uma formação pautada nessa desconstrução. Por isso, a temática racial não entra no planejamento e fica a critério de cada educador estabelecê-la”, ressalta Maysa.
Somando-se aos pouco mais de 2% de pesquisadores pretos que estão presentes na pós-graduação, segundo dados da Liga da Ciência Preta Brasileira, Maysa atualmente pesquisa sobre racismo ambiental urbano no Programa de Desenvolvimento e Meio Ambiente da UFPE e revela o quanto a branquitude está instituída nas academias.
Propondo compreender as contribuições de cientistas negros na ciência brasileira, Maysa pontua que a aplicabilidade da Lei 10.639 é um processo contínuo, já que a decolonização dos currículos escolares é um trabalho que não faz nem 20 anos. De acordo com ela, “as práticas pedagógicas estão nos saberes científicos daqueles que muitas vezes só são vistos como mão de obra, os negros. Um professor de biologia, por exemplo, pode explicar genética a partir de uma perspectiva histórica para demonstrar como a ciência se utilizou da raça para justificar o racismo.”
A professora também alerta para o trabalho coletivo entre professores, gestão escolar e responsáveis a fim de impedir a reprodução do racismo e, assim, proporcionar um ambiente escolar acolhedor. Uma das orientações que Maysa dá é a atenção que o educador deve ter na escolha dos materiais didáticos usados em sala de aula, que muitas vezes, nos assuntos de fisiologia humana, trazem apenas figuras de corpos brancos. “Assim, a partir de uma educação reflexiva e antirracista será possível perceber que o que muitas vezes chamamos de bullyng, na verdade é racismo, e ele está por toda parte”, complementa.
Geografia
Para a professora Valéria de Marcos, do Departamento de Geografia da FFLCH, a inaplicabilidade da Lei 10.639 se dá de muitas formas, é uma questão complexa e sua resolução também. Atuando desde 2019 no projeto Saberes em Diálogo: Comunidade, Escola e Universidade na Construção da Educação Escolar Quilombola no Município de Barra do Turvo-SP, a educadora enxerga a Lei como uma reparação histórica, uma ação que busca promover uma educação antirracista e inclusiva, embora sua existência sem fiscalização não garanta sua aplicação.
“A mentalidade colonial está gravada no imaginário coletivo da sociedade. Mudar esta mentalidade é urgente e a escola é parte fundamental – mas não única – neste processo. Não basta criar a Lei. É preciso construir as condições para que ela possa ser colocada em prática”, aponta Valéria, que alerta para o processo de formação dos educadores e da fiscalização da Lei para que ela seja devidamente cumprida.
O projeto, que atualmente recebe apoio da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) da USP, já realizou inúmeras atividades, como oficinas e cursos de formação continuada, a fim de aproximar a realidade das comunidades quilombolas dos professores. Ela destaca o quanto a ausência da formação de professores das mais variadas ciências e de materiais didáticos que contemplem saberes da população afro-brasileira é um impedimento para que a Lei seja aplicada da forma como deveria.
Esse descumprimento, segundo Valéria, afeta diretamente o ambiente escolar e reproduz indivíduos em formação com comportamento racistas.“Não podemos nos esquecer que também a escola é lugar onde o racismo se manifesta, de forma velada ou não, e muitas vezes são os próprios professores que se recusam a colocar a Lei em prática”, complementa a professora.
Ela relata o quanto é preciso abrir espaço nos currículos dos cursos de graduação para que essa temática seja inserida e disputar espaço nos materiais didáticos para que ela possa ser incorporada. Além disso, garantir a formação continuada na escola, que deve assumir para si o cumprimento da Lei e a efetiva realização de uma educação inclusiva e antirracista. A professora demonstra que não falta conteúdo para que a Lei 10.639 venha a ser aplicada nas práticas pedagógicas no ensino de geografia. Os modos de vida, os saberes e práticas tradicionais, os fortes laços comunitários que unem os integrantes das comunidades quilombolas, as desigualdades sociais e étnico-espaciais, as periferias, as relações de (abuso de) poder a que essas populações são submetidas, entre outras questões, são algumas dessas aplicabilidades.
*Com informações do site Jornal da USP