Nova divisão de tarefas e o mercado de trabalho para os homens: o que vai ficar depois da pandemia?

“Antes da pandemia, minha rotina no trabalho era de 8h diárias de segunda a sexta. Algumas flexibilidades de horários, alguns dias no mês de home office. Tempo de deslocamento de 2h em média”. Era assim que o tempo de Bruno Amorim, 26 anos, gerente administrativo, era distribuído. Mas, a rotina foi alterada. Há meses. “Eu passei a trabalhar menos horas direto. As atividades de casa seguem mais ou menos a mesma rotina, com a inclusão de dedicar mais tempo aos meus filhos com brincadeiras e leituras, por exemplo”, explica Bruno que mora em São Paulo com a companheira e os dois filhos, de 4 e 2 anos.

Realmente não há como negar que 2020 foi um ano que mexeu com muitas estruturas – que já estavam um tanto abaladas, sejamos honestos. Na casa de Alexandre Vega, 42 anos, antropólogo que trabalha como produtor de conteúdo digital também foi assim. Ele e a companheira moram com os dois filhos, de 10 e 5 anos. “Com a pandemia, passamos a assumir todos os cuidados com a casa (antes uma diarista vinha a cada 15 dias), deixamos de trabalhar fora e de comer fora, minha companheira assumiu a tarefa de fazer quase todas as refeições. Demorou para podermos ver algo positivo nessa situação”.

Ele conta que o desgaste no início foi grande até que a família conseguisse estabelecer uma nova dinâmica e divisão de tarefas que fizesse sentido. “Minha companheira teve um aumento na carga de trabalho muito grande. Eu passei a ir trabalhar presencialmente 3 vezes por semana e tinha um horário acordado com meu chefe em que eu trabalhava menos horas diárias. Contudo, o horário acordado quase nunca era cumprido por ele, que me envia demandas das 9h às 22h constantemente, mesmo com meu salário tendo sido reduzido em 30%”.

Bruno e Alexandre são apenas exemplos de homens que passaram a revisar – por conta própria, mas também por necessidade – ainda mais a divisão de tarefas em casa e o tempo destinado ao trabalho. Ambos participaram da pesquisa “Pais em Casa – impactos da pandemia na divisão do trabalho de cuidado”, realizada em parceria entre a Plataforma de Formação Parental 4Daddy e as pesquisadoras de gênero Camila Pires Garcia e Tayná Leite. O estudo foi realizado em três etapas entre os meses de maio a agosto de 2020. Responderam a pesquisa 1554 pessoas, sendo 261 homens (215 pais) e 1293 mulheres (1120 mães). A pesquisa qualitativa foi direcionada a 21 pais e 6 mães.

Leandro Ziotto, pai afetivo do Vini e fundador da 4Daddy, comenta que a pesquisa apresenta alguns dados importantes para refletir sobre o papel do homem na sociedade. “Uma parte do report ‘chove no molhado’ e comprova que a Economia do Cuidado, o pilar central para a manutenção da nossa sociedade e economia, é ainda invisibilizado, desvalorizado e majoritariamente exercido por mulheres e mesmo durante a histórica pandemia que estamos passando, esse trabalho do cuidado e atividade doméstica continua uma sobrecarga física, mental e emocional feminina”.

Porém, segundo Ziotto, a pesquisa buscava mostrar que, “paralelamente ainda com esse desequilíbrio que é fruto de um machismo cultural, estrutural e institucional, há uma geração de homens/pais que vem cada vez mais se apoderando dessa função de cuidar, seja com os cuidados com as crianças e/ou com os cuidados domésticos.”

“Então o nosso objetivo foi trazer luz e esperança. Pois há uma geração de homens/pais, mesmo que ainda minoritário, que começam a se apoderar dessa função. Ainda estamos longe, muito longe do ideal. E infelizmente estamos caminhando muito lentamente. Mas estamos caminhando”, avalia.

Divisão de tarefas

A pandemia não foi o único fator que gerou mudanças, evidentemente. Mas ela obrigou a aumentar a reflexão e o debate sobre o tema. Além disso, de acordo com a pesquisa, é possível destacar alguns dados sobre essas mudanças neste período de isolamento. A participação dos homens nos afazeres que envolvem a alimentação e as atividades educacionais das crianças, por exemplo, teve um salto significativo, se comparado com dados abertos de antes da pandemia. “Outro dado importante mostra que 37% dos homens respondentes declaram que passam mais de 3 horas diárias dedicados exclusivamente para atividades domésticas. Mesmo que esse número ainda seja baixo comparado com o das mulheres (63%), ele é um salto enorme comparado com antes da pandemia, cuja porcentagem não chegou a dois dígitos”, indica Ziotto.

Bruno comenta as dificuldades que enfrentou para lidar com esse novo quadro de funções. “Na pandemia a gente precisa se adaptar a uma rotina com os cuidados e com as crianças em casa. Isso toma uma grande energia e saúde mental da gente. Eles também sofrem muito com isso. Eu me percebo mais irritado, mais cansado, menos atencioso e procurando soluções mais fáceis e rápidas. Há uma sobrecarga, mas por sorte temos uma boa rede de apoio que ajuda bastante a gente”.

Na casa de Alexandre também foi assim. “Temos demandas diferentes de trabalho e que são difíceis de conciliar. Além disso, é sempre necessário um esforço para não naturalizarmos uma divisão de trabalho que desvalorize ou invisibilize o trabalho feminino. Tentamos fazer isso sempre, mas mesmo assim é algo que notamos ainda presente no dia a dia”.

Esse fator da invisibilidade talvez seja um dos mais complexos de alterar e Ziotto comenta que esse é um dado reforçado pelo levantamento. “A nossa pesquisa e outras, comprovam que os homens têm se apoderado dos cuidados diretos [como colocar a criança para dormir]. Porém, o pré-cuidado [limpar a roupa de cama, por exemplo] e a gestão mental, ainda é majoritariamente feminino. Então ainda há uma necessidade de sensibilizar os homens para esses outros cuidados”, explica.

Parte desse resultado ocorre por existir uma falta de conhecimento e de habilidade – gerada por questões culturais que afetam nesse processo de mudança. “O machismo faz isso com os homens, principalmente no que tange a gestão mental. A cultura ainda faz o homem ‘ajudar’ a esposa, ficando tudo a cargo da mulher. Outro fator importante é a falta de conhecimento e de habilidades para fazer a tarefa. Houve homens que relataram que devido ao isolamento social fizeram vídeos chamadas com suas faxineiras para elas ensinarem tarefas básicas como mexer na máquina de lavar, desengordurar panela e etc”, comenta Ziotto.

Futuro do mercado de trabalho

Ainda não há como saber de que forma essas mudanças e reflexões irão afetar o pós-pandemia, até porque ela ainda não foi superada. No entanto, é possível pensar que ao menos uma parcela desses homens que precisaram rever a rotina tendem a se posicionar positivamente sobre manter tais mudanças, principalmente em relação à revisão do tempo dedicado ao trabalho.

Bruno é categórico quanto a isso. “A gente já vinha questionando e repensando o tempo que dedicamos ao trabalho e outras atividades. Na medida do possível para nossa situação financeira, orientamos nossa vida para termos mais tempo para atividades fora do trabalho e com a família e amigos. A pandemia aumentou essa nossa vontade de dedicar mais tempo para atividades que sejam mais recompensadoras. Agora em relação ao trabalho espero que essa possibilidade de flexibilização seja mais comum. Pode ser saudável para todos poder ter outras rotinas que permitam estar mais próximos uns dos outros aqui em casa”.

Para Alexandre, o lugar do trabalho também deve sofrer alteração em sua vida num cenário pós pandemia. “Tentaremos manter o máximo possível o regime de trabalho remoto. Mas isso vai depender muito da nossa condição financeira. Perdemos renda com a pandemia e estamos longe de retomar o mesmo patamar de antes, que já era abaixo do que consideramos ideal. Conversamos muito com pessoas que estão ligadas a análise do mercado de trabalho e acho que estamos passando por um período longo de transição, que deve durar para além de 2021. Não sei dizer como isso vai se traduzir nas relações entre empresa-empregado, mas a negociação será difícil, já que a relação é assimétrica”.

O levantamento divulgado pela 4Daddy também indica essa tendência. “Com a pesquisa qualitativa, os 21 entrevistados de forma aprofundada declararam que querem continuar com essa relação mais estreita e próxima com a criação dos filhos e filhas, e que estariam mais atentos com a divisão das atividades domésticas. Agora se isso realmente ocorrerá depois que a pandemia acabar, apenas uma segunda pesquisa responderá”, diz Ziotto.

Além disso, para que isso ocorra mesmo, não basta apenas que os homens mudem individualmente. Ziotto lembra que estamos falando de um sistema maior e muito mais complexo que envolve outros atores. “Eu acredito que a melhor divisão [de tarefas] ou a reflexão sobre ela permaneça mesmo após a pandemia. Essa reflexão sobre o papel do Homem no cuidado já vinha amadurecendo e continuará. A pandemia, ao meu ver, escancarou, mas não tem como falarmos desse tema sem falarmos e discutirmos as próprias relações de trabalho, capitalismo e o papel das empresas nesta pauta”.

Ele exemplifica: “Enquanto licenças maternas forem maiores que as paternas, enquanto as mulheres mães forem vistas com desconfiança, enquanto não tivermos políticas privadas de gênero, não adianta pesquisa, roda de conversa e reflexão. Quando discutimos esse tema destacamos muito a responsabilidade da sociedade civil e do Estado, mas negligenciamos o enorme papel das empresas. No sistema econômico em que nos organizamos, as empresas têm papel fundamental para manter o status quo, ou romper com ele, mais que qualquer cultura social ou política pública”.

Por: Ana Ignacio, Especial para o HuffPost Brasil

**Concepção e Coordenação de Amauri Terto e Diego Iraheta

Imagem em Destaque: Isolamento social fez com que famílias se organizassem em casa e refletissem sobre o papel e a relação do homem com seu emprego e os afazeres doméstico. Arte: Tiago Limón

Fonte: Yahoo

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