(Foto: Reprodução)

Paciência e carinho: segredos de educadora para garantir alfabetização de adultos

Quando Ducarmo Galvão era criança em Ipueiras, no interior do Ceará das décadas de 1960 e 1970, a escola local só oferecia aulas de ensino fundamental. “Estudei até onde deu pra estudar lá”, disse ela, que aos 20 e poucos anos migrou para São Paulo, criou raízes e família na região sudeste da capital.

Hoje ela é uma das educadoras responsáveis pelas 17 turmas do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova) mantidas pela União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas).

Há sete anos, um dos primeiros alunos quando Ducarmo assumiu o cargo, um homem de 38 anos, avisou que decidiu aprender a ler e a escrever para poder tirar a carteira de motorista.

Há alguns dias, ele bateu na porta da casa dela.
“Ele chegou, me deu um abraço e me mostrou um papel. Eu olhei o papel, era a habilitação dele, que tinha conseguido tirar. Até falando com você eu me emociono. É muito gratificante.”

Pode parecer uma curva de aprendizado lenta, mas Ducarmo explica que o tempo da educação para os adultos é diferente do das crianças.

A começar pelo fato de que a educação não é a maior prioridade na rotina dos adultos, que precisam trabalhar e sustentar a família. Por isso as aulas do Mova só são oferecidas no período noturno, para poder se encaixar na rotina dos estudantes.

“Trabalhar com o adulto é uma coisa lenta. Tem que ter calma, tem que ter tudo isso para que ele aprenda”, explica ela, que ressalta ainda a heterogeneidade das turmas. “Tem uns que já vão para o alfabeto. Tem outros que já escrevem um pouco, já sabem o nome, alguma coisinha. E tem os que não conhecem nada.”

Por isso, ela diz que, mais do que tudo, o Mova exige paciência.

“Tem que ter paciência, tem que ter carinho e tem que esperar. É uma sementinha que a gente está plantando.”

Os frutos, segundo ela, são duradouros. O aluno que conseguiu tirar a carta de motorista, por exemplo, diz que vai seguir estudando. “Ele era do interior de Pernambuco. Bebia muito. Depois das aulas, ele parou de beber. Falou que quando chegava do trabalho ia beber. Agora, em vez de ir pro bar, ele vai para a sala de aula.”

Educação em movimento

Garantir às várias gerações de adultos que tiveram seu direito à educação negado quando tinham idade escolar é um dos objetivos por trás do Mova, uma política pública realizada por meio de parcerias entre o poder púbico e associações como a Unas.

As secretarias repassam ajuda de custo e as entidades providenciam o espaço, o material didático e os educadores para atuarem em turmas de pelo menos 20 estudantes.

Mas Ducarmo afirma que o aprendizado não acontece apenas na sala de aula e destaca que o currículo não se atém ao “beabá”.

“O Mova é um movimento. Você não aprende só em sala de aula, aprende fora dela, aprende a lutar pelos seus direitos. É uma troca, aprendo com eles, e eles aprendem comigo. É como diz Paulo Freire: não é quem sabe mais, existem saberes diferentes. Eu amo muito o que eu faço, muito.”

Neste mês, as aulas incluíram rodas de conversa sobre Outubro Rosa e a importância dos exames para o diagnóstico precoce do câncer de mama. Em novembro, será a vez de trabalhar a Consciência Negra.

“A gente é um pouco psicóloga dos alunos. Às vezes você planeja uma atividade e, no decorrer dos acontecimentos, a gente muda a atividade e vai para o que está acontecendo no momento”, explica.

No dia a dia, as aulas também são voltadas para auxiliar os alunos a navegarem pela sociedade. Um exemplo é literal: ensiná-los a usar os ônibus e o Metrô. “Outro dia uma aluna falou: ‘Fui pegar um ônibus e soube ler o nome do ônibus: Vila Mariana’”, lembra Ducarmo, que tem exemplos intermináveis dos resultados das aulas.

“Um dia uma aluna, que é uma das mais velhas, a dona das Dores, falou assim: ‘Eu fui no médico ontem, quando cheguei lá tinham reformado todas as salas. Eu não sabia mais onde era a sala do meu médico. Não é que eu soube ler onde era a sala do médico?’ É tão gratificante que você não tem ideia.”

A pandemia fez com que o ensino presencial, ainda mais importante para os adultos, que têm menos contato com a tecnologia, fosse interrompido durante todo o ano de 2020. Mas isso não impediu que Ducarmo continuasse com as atividades, que precisaram ser adaptadas de acordo com o acesso à internet de cada estudante.

“Tenho idades variadas, uma aluna com mais de 80, uma com 79, outra com 65, e assim vai. Tenho alunos de 40. Tenho mais ou menos dez idosos”, diz ela, que contou com a ajuda dos filhos e até netos dos alunos mais velhos para garantir que eles conseguissem fazer as atividades durante a quarentena.

Nova vocação após os 50 anos

Ser educadora não estava em seus planos na juventude, já que ela mesma faz parte da população brasileira que não teve acesso adequado à educação básica e até hoje não fez o ensino médio.

“Para fazer o ensino médio você tinha que ir pra cidade, e meus pais não tinham condições de pagar pra gente morar na cidade”, lembra a cearense radicada na capital, a quinta de seis filhos.

A falta de diploma limitou suas opções de emprego, mas há cerca de 15 anos ela passou a integrar o quadro de funcionários da Unas. Começou cuidando da limpeza do CCA, o Centro para a Criança e o Adolescente da associação, que atende estudantes no contraturno escolar. “Trabalhei quatro anos e meio na limpeza e na cozinha”, diz ela, emendando que “a Unas vai dando oportunidade pras pessoas”. Foi em uma dessas oportunidades que ela passou a auxiliar no funcionamento das máquinas de lavar de uma lavanderia comunitária que a União mantém com apoio de uma empresa.

Quando o projeto foi encerrado, o espaço da lavanderia, na Avenida Juntas Provisórias, no Ipiranga, acabou sendo transformado, há sete anos, no Centro de Educação Popular Dona Antônia.

E Ducarmo recebeu a proposta de atuar como educadora de uma sala do Mova.

“Aceitei porque foi uma proposta muito boa. A Unas valoriza muito a educação, o Mova vem pra dar direito às pessoas que não tiveram oportunidade de estudar.”

Filha pedagoga

Hoje ela diz que não se vê fazendo outra coisa. Até mantém uma vendinha de sorvetes, para ajudar a complementar a renda, mas diz que vende tão pouco que nem sequer a considera como ganha-pão. E o que recebe como educadora do Mova também é pouco, menos de um salário mínimo.

Segundo ela, seu trabalho não paga todas as contas, e ela depende também da renda do marido, que é caminhoneiro autônomo.

A filha Aline, porém, se tornou a primeira da família a conseguir diplomas dos ensinos médio e superior.

Mesmo sabendo que a área de educação traz pouco retorno financeiro, e ainda menos reconhecimento, Ducarmo diz que se alegrou quando a filha anunciou que quer fazer faculdade de pedagogia. “Eu fiquei feliz, incentivei. No dia da formatura dela, eu chorei. No meio da plateia, eu gritava bem alto: ‘Aline, eu te amo, conseguimos!’ Porque foi difícil, na época ela não teve bolsa não, trabalhou para pagar a faculdade dela.”

Atualmente, enquanto a mãe ensina os adultos, a filha é professora em uma creche municipal.

“Esses professores guerreiros, essas educadoras guerreiras merecem todos os nossos aplausos no Dia dos Professores. Pela garra que cada um tem. Pena que não é reconhecido como todos merecem”, ressalta.

*Com informações do site G1

Compartilhar

Últimas Notícias