Dentro do quarto de uma casa quase destruída, Francisca dos Santos e Markatison Quintino usavam as mãos para cavar um amontoado de terra e lama. Em desespero, tentavam alcançar o corpo da filha Mirella, de sete anos, soterrada instantes antes, após uma forte chuva. O casal conta à InfoAmazonia que eram 9h de 17 de janeiro de 2022. A angústia durou horas. A criança só foi resgatada às 14h, sem vida, com ajuda do Corpo de Bombeiros.
Três anos depois, não muito longe dali, Mariele da Costa lembra que teve um pesadelo em que fugia de casa com as duas filhas — uma de nove anos e a outra de oito meses. Dois dias após o sonho, ele se tornou realidade. Era 19 de março de 2025 e o barranco que ficava acima da sua moradia desabou após outra chuva forte. Ela diz que só teve força para pegar as duas crianças e correr.
“Foi um estrondo tão grande. A minha filha correu para a cozinha. Ela olhou pela janela, assustada, chorando, e disse: ‘Mãe, tá caindo tudo’. Aí, pronto: era fio, poste de madeira no chão, os porcos do vizinho correndo. Peguei a [criança] que estava deitada e disse pra outra: ‘Corre’”, lembra Mariele.
Apesar do intervalo de tempo entre as histórias dessas famílias, elas se passaram na mesma comunidade: a Fazendinha, no bairro Cidade de Deus, Zona Norte de Manaus, Amazonas. Fazendinha é uma área de risco muito alto a eventos hidrogeológicos, como deslizamentos, inundações, enxurradas e erosões. Ela foi mapeada pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB), empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia. O mapeamento é feito em todo o país, a partir de pedidos feitos por órgãos municipais e estaduais.
Na Amazônia Legal, 374 dos 772 municípios foram monitorados e 290 deles têm áreas de risco. Para mapear essas regiões, os pesquisadores do SGB identificam terrenos com encostas e barrancos e, em seguida, analisam a possibilidade de ocorrência desses eventos. O risco é classificado como alto — em áreas com barrancos e morros, onde existem casas que podem ser atingidas — ou muito alto — onde já ocorreram deslizamentos e rachaduras nos terrenos e há presença de habitações.
Quem são os mais vulneráveis aos eventos climáticos?
Com o aumento da frequência dos extremos climáticos, com as fortes chuvas e as secas extremas na Amazônia, as populações que vivem nessas regiões de risco alto e muito alto estão mais suscetíveis a eventos como as inundações, alagamentos, deslizamentos e erosões mapeados pelo serviço federal.
Esta é a primeira reportagem da série Vulneráveis do Clima, que mapeou quem são os mais expostos a esses desastres na região amazônica. É uma produção da InfoAmazonia em parceria com os veículos da Rede Cidadã InfoAmazonia Agência Carta Amazônia (PA), Vocativo (AM), Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amapá (AP), Pulso Amazônico (AM) e Voz da Terra (RO).
A partir do cruzamento inédito entre dados do Censo 2022 (IBGE) e o mapeamento de risco do SGB, revelamos que as áreas de risco a desastres hidrogeológicos na Amazônia estão majoritariamente em zonas urbanas, com condições de saneamento significativamente piores do que em outras regiões do país.
A análise mostra que 61% das pessoas que vivem nessas áreas estão em terrenos com alto risco e 39% em locais com risco classificado como muito alto. Nestes lugares, as casas são majoritariamente chefiadas por mulheres. Elas compõem 55% desse cenário. Além disso, os jovens com menos de 30 anos representam 51%, e pessoas pardas ou pretas são 81% do total dos mais expostos aos eventos climáticos.
Na Amazônia, 45% das áreas de risco estão concentradas em favelas e comunidades urbanas – localidades que se caracterizam pela presença de ocupações informais, ausência ou oferta incompleta de serviços públicos, infraestrutura precária ou autoproduzida, segundo o IBGE. Nas demais regiões do país, essa proporção é significativamente menor: apenas 22% das áreas de risco estão em favelas e comunidades urbanas.
Em Manaus, 85% da população exposta vivem em áreas de risco alto para desastres hidrogeológicos, e os 15% restantes estão em zonas classificadas como risco muito alto. Na comunidade Fazendinha, há trechos com esse nível de alerta desde 2019. O território é um retrato dos indicadores encontrados no levantamento e revela como a ausência de medidas de adaptação
aos eventos climáticos pode impactar a vida dos amazônidas.
O pesquisador do SGB Elton Andretta, responsável pelo monitoramento das áreas de risco na Amazônia e consultor científico desta reportagem, explica que o solo da cidade de Manaus é conhecido pela sua estrutura solta, leve e que se desfaz facilmente.
“[Os solos] são formações sedimentares com alimíticos, siltitos e argilitos
. Quando se alteram, são mais propensos a sofrer com erosões. Em Manaus, em torno de 13º [graus de desnível] já começa a ocorrer movimento de deslizamento, enquanto no resto do Brasil a média é 16º, 17º — já é um fator que piora”, conta Andretta.
Em 2022, quando Mariele se mudou para a comunidade Fazendinha com o marido Alexandre Santos, não sabia que estava vulnerável. Comprou a casa por R$ 15 mil. Escolheu o lugar pelo baixo custo financeiro. Imaginou construir toda a vida ali. Além da moradia, plantava banana, mamão, limão, maxixe e capim-santo. Antes da filha mais nova nascer, usava o espaço como estúdio e oferecia alongamento de cílios para as colegas da comunidade.
Hoje, Mariele está recebendo auxílio-aluguel de R$ 600, concedido pela Prefeitura de Manaus. Ela ainda está morando na comunidade. “Quando eu olhei para trás, não vi as casas dos vizinhos. Foi horrível. A gente veio para cá porque não encontrou outro lugar. Estou aqui, mas eu tenho medo”, diz.
A comunidade Fazendinha é uma ocupação recente. A líder comunitária Josiane Froes conta que as moradias mais antigas datam de 2015. O local só tem uma rua de acesso. As casas são de estrutura inacabada, e não há esgoto nem coleta de lixo em todas as ruas. Os moradores precisam levar os sacos até uma lixeira usada por todos, onde a coleta da prefeitura da cidade passa.
A falta de acesso à rede de esgoto também não é exclusividade da comunidade Fazendinha. Em toda a Amazônia Legal, 75% dos domicílios em áreas de risco não têm acesso ao serviço de saneamento básico, sendo que mais de um terço deles destinam o esgoto em fossas rudimentares ou buracos. Esse cenário é diferente nas demais regiões do país, onde há maior acesso à rede de esgoto em áreas de risco, apenas 28,7% dos domicílios fora da Amazônia não têm acesso à rede de esgoto.
Por conta da carência de serviços públicos, os moradores da Fazendinha criaram um senso comunitário que inclui até eleição para presidente e vice-presidente da comunidade. Eles não possuem uma associação formalizada, mas definiram os dois cargos. São duas mulheres responsáveis por ajudar com necessidades básicas, como o auxílio para marcação de consultas médicas, distribuição de alimentos e a procura de apoio de parlamentares para projetos que beneficiem a população.
Josiane Froes é a presidente, mas contava com um braço direito: Sammya Maciel, que ocupava o cargo de vice. Quando ocorreu o desmoronamento que atingiu a casa de Mariele, em março deste ano, Josiane não estava no local. Sammya, sim. A moradia da vice-presidente não foi atingida, mas ela correu para ajudar quem estava perdendo tudo. Na tentativa de colaborar, foi soterrada e morreu.
“Ela costumava fazer bingo solidário. Se uma criança estava precisando de roupa, ela ia correr atrás. No pior dia da minha vida, eu saí para levar uns ofícios numa secretaria, para pegar peixe para a Semana Santa. Eu cheguei em casa com muita dor de cabeça e dormi. O telefone tocava, só que eu rejeitava. Quando cheguei aqui, a Sammya estava soterrada”, conta.
Urbanização e comunidade
Desde a graduação, a assistente social Najara Amaro, doutoranda da Universidade Federal do Pará (UFPA), estuda políticas urbanas para as cidades: “Há carência do abastecimento de água pela rede pública, de coleta de lixo, de energia elétrica e adensamento excessivo, quando são muitas pessoas vivendo numa única habitação”, explica.
Há carência do abastecimento de água pela rede pública, de coleta de lixo, de energia elétrica e adensamento excessivo, quando são muitas pessoas vivendo numa única habitação.
Najara Amaro, assistente social e doutoranda da UFPA
Essas condições já existentes estão sendo agravadas pelos eventos climáticos extremos. “Intensificou [a frequência de eventos climáticos], mas já ocorria, sempre ocorreu. A diferença é que hoje estamos menos preparados. Dez anos atrás, a gente via muito a casa de palafita, que é uma construção mais segura para a região, porque nós temos os grandes rios que inundam, secam e têm erosões fluviais. Esse tipo de construção fica mais fácil de ser desmontada. Não tem esgoto e aterro sanitário nas cidades. As pessoas não estão preocupadas com isso”, diz o pesquisador Elton Andretta.
Dez anos atrás, a gente via muito a casa de palafita, que é uma construção mais segura para a região, porque nós temos os grandes rios que inundam, secam e têm erosões fluviais. Esse tipo de construção fica mais fácil de ser desmontada. Não tem esgoto e aterro sanitário nas cidades. As pessoas não estão preocupadas com isso.
Elton Andretta, pesquisador do SGB
Apesar de os riscos existirem há anos, as medidas para novas moradias, dentro do contexto da crise climática global, não são uma prioridade dos governos locais. Najara Amaro diz que as casas do Programa Minha Casa Minha Vida, maior programa de habitação do país, não contemplam as realidades amazônicas, como são as casas de palafitas mencionadas por Andretta.
“Nós temos unidades habitacionais construídas em áreas sem infraestrutura básica. Sem acesso fácil à escola, a posto de saúde, asfaltamento, esgoto sanitário. No interior, temos famílias grandes. Um apartamento com dois quartos, sala, cozinha e banheiro não cabe todo mundo. Então, fica aquele ambiente adensado. Isso porque existe uma padronização no programa, que não funciona em todos os lugares”, diz.
Amaro cita uma medida simples de adaptação cultural, que é a inclusão de amarradores de redes nas casas, mas isso não é oficializado como padrão para as cidades amazônicas. “Isso era uma coisa que eu ouvia muito durante minha pesquisa do mestrado, em que as famílias falavam assim: ‘Olha, eu não tinha como amarrar a rede. Eu tive que quebrar a parede para colocar um armador de rede’. E isso é o comum da sociedade local, as pessoas usam redes. Mas medidas que considerem a cultura são ignoradas”, diz.
A reportagem perguntou ao Ministério das Cidades se há algum avanço para adaptar as moradias às realidades amazônicas, se a questão está sendo discutida no programa e como o ministério avalia as críticas apresentadas pela pesquisadora. O órgão informou que o programa busca respeitar os modos de vida e cultura de cada região do país. “Não há um modo único de construção no programa: as diretrizes do MCMV [Minha Casa Minha Vida] priorizam soluções arquitetônicas compatíveis com aspectos regionais, ambientais, climáticos e culturais”.
Também esclareceu que, em 2023, foi feita uma resolução determinando a instalação de ganchos para redes em empreendimentos feitos nas regiões Norte e Nordeste. Sobre a necessidade de mais quartos nas casas dos beneficiários, o ministério afirmou que o padrão mínimo são dois quartos, mas não há impedimento para propostas com mais dormitórios. “O programa está em constante aprimoramento, acolhendo críticas construtivas para seu aperfeiçoamento contínuo”. Leia a nota completa aqui.
Ocupação irregular na Amazônia
Manaus é uma cidade que recebe imigrantes de todo o Amazonas. Para quem deseja comprar uma moradia e não possui alta renda, os projetos imobiliários são escassos. Os programas habitacionais possuem longas filas de espera e ficam em zonas afastadas das oportunidades de emprego.
O geógrafo Fernando Monteiro, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), explica que o crescimento urbano na região se deu por uma lógica econômica e mercantilista, provocada pela colonização e estimulada por governos. Esse aumento populacional e imobiliário não considerou as famílias mais pobres, e as chances que elas têm de comprar um terreno em local seguro são pequenas.
Uma das primeiras localidades a abrigar pessoas com baixa renda na cidade ficou conhecida como “Cidade Flutuante”. Os trabalhadores construíram moradias de madeira no rio Negro, que existiram entre 1920 e 1967. No auge da ocupação, eram cerca de 12 mil pessoas vivendo na cidade. O governador da época, Arthur Reis, ordenou a retirada dos moradores. Eles começaram a construir casas em regiões periféricas onde hoje estão os bairros da Alvorada, Coroado e Santo Antônio, nas zonas leste e oeste.
Esse fato histórico repercute na cidade até hoje. Manaus foi expandindo nessa mesma lógica, sem ordenamento territorial ou avaliações sobre a segurança do solo. Assim como ocorreu antes, imigrantes e pessoas mais pobres continuam encontrando poucos espaços para viver, sendo submetidos às áreas de risco.
Monteiro explica que isso ocorre por conta da expansão do mercado imobiliário, que se deu sem a devida gestão territorial. “Com a chegada desses novos agentes econômicos, que vão alterar todo esse espaço, a tendência é que essa população vá sendo jogada para outras áreas. Por quê? A primeira coisa é o encarecimento do solo desses espaços. Os serviços ao redor vão ficando mais caros. Há um engessamento do modo de vida cultural nesses lugares. É o que a gente chama de ‘fragmentação socio-espacial’, quando os estilhaços dessa problemática vão para todas as áreas da cidade. Isso fez explodir um processo de favelização em Manaus”, explica o geógrafo.
A assistente social Najara Amaro também estuda a história da ocupação na região do Pará: “quando o Pará começa a se inserir no circuito de produção de matérias-primas de exportação, surgiram outras cidades. Muitas outras surgiram em torno das estradas, e depois surgem outras vinculadas às áreas de extração mineral. As cidades vão se formando em torno de outras infraestruturas que são preparadas para atender esse capital”, dizem.
A conclusão é que não há enfoque para os menos abastecidos, os que necessitam de habitações seguras com valores mais baixos. “As pessoas que têm um maior poder aquisitivo, elas são ‘infraestruturadas’. As pessoas que têm um poder aquisitivo menor, são menos ‘infraestruturadas’. Elas estarão nas áreas mais distantes, onde é possível comprar”, explica Amaro.
Foi assim que Francisca dos Santos e Markatison Quintino ocuparam a casa que acabou em deslizamento. Eles que saíram de Maués, no interior do Amazonas, para buscar melhores condições para a família, mas sem ter onde morar. Pagaram aluguel por dois anos, até conseguirem comprar um terreno no valor de R$ 10 mil, na comunidade Fazendinha. Depois de perderem a filha soterrada, nunca mais voltaram ao local.
“Na época que a gente comprou, ainda não tinha acontecido essas coisas [deslizamento]. Nem passou pela nossa cabeça que podia acontecer. Tinha o barranco e era alto, ficava atrás da casa e tinha outras casas em cima, mas a gente confiou em construir a casa ali”, lembra Quintino.
Na época que a gente comprou, ainda não tinha acontecido essas coisas [deslizamento]. Nem passou pela nossa cabeça que podia acontecer. Tinha o barranco e era alto, ficava atrás da casa e tinha outras casas em cima, mas a gente confiou em construir a casa ali.
Markatison Quintino, morador da comunidade Fazendinha, em Manaus
A família recebeu auxílio-aluguel no valor de R$ 300 por um ano e seis meses. Eles ainda esperam receber uma casa num programa de habitação da prefeitura. O caso é acompanhado pela Defensoria Pública do estado. “Eu olhei e era tudo escombro. A casa toda no chão. Aí eu vi que aquilo não valia nada. Pelo o que eu perdi, não valia nada. Não valia a pena continuar ali. Nossa perda foi total. Perdemos tudo, até a nossa filha”, diz Quintino.
Esta reportagem faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia. Foi produzida na Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com apoio do Instituto Serrapilheira.
Texto: Jullie Pereira
Edição: Carolina Dantas
Direção editorial: Juliana Mori
Fonte: Info Amazônia.