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Como a Amazônia se tornou berço do maior rebanho de bois no Brasil

A pecuária na Amazônia tem 402 anos de história, mas a sua relação com o desmatamento do bioma é mais recente. Começou por volta dos anos de 1960, quando o governo da ditadura militar atraiu grandes investidores para a região através de incentivos fiscais.

Na época, a maioria dos empresários optou pela criação de gado, pois ela permitia uma ocupação mais rápida do território, ao demandar menos investimentos em mão de obra e tecnologia.

A expansão da atividade deu início a um processo acelerado de desmatamento da região, que se seguiu nas décadas seguintes, apoiado também pela mineração e agricultura – principalmente pela soja, a partir de meados dos anos de 1990.

A extração de madeira também devastou o bioma, mas ela não é classificada como desmatamento por não remover toda a vegetação.

Apesar de outras atividades contribuírem para a derrubada de floresta, a pecuária sempre despontou como a principal causa de desmatamento da Amazônia.

➡️De 1985 a 2022, 88% das áreas desmatadas viraram pastagem, 11%, agricultura e 1%, silvicultura, destaca a porta-voz do Greenpeace Brasil Ana Clis Ferreira, que consolidou dados da plataforma MapBiomas, que reúne estatísticas de desmatamento dos últimos 39 anos.

➡️Um recorte temporal mais recente mostra uma dinâmica semelhante no que diz respeito à criação de gado: 96,4% das áreas desmatadas entre 2018 e 2022 foram convertidas em pastagens, enquanto 0,83% viraram mineração e 0,68%, agricultura.

Especulação de terras

 

Segundo o coordenador do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal da USP Ricardo Rodrigues, a abertura de pastagens, atualmente, está mais relacionada a um problema de especulação de terras do que com a necessidade de aumentar a produção. Isso porque, hoje, o Brasil já tem técnicas para expandir a criação de gado nos pastos que já existem.

“Infelizmente, no mercado da terra no Brasil, principalmente na Amazônia, a área sem florestas vale muito mais que a área com florestas. No município de Paragominas, por exemplo, uma área sem floresta vale R$ 30 mil o hectare ou mais. E uma área com floresta vale R$ 3 mil o hectare”, diz Rodrigues.

 

“O único detalhe é que a pecuária é a atividade agrícola mais barata e mais fácil de ser tocada nessas condições. Então, por isso, ela entra como uma opção de uso daquela terra”, acrescenta.

“O pecuarista […] que está na frente do desmatamento, ele não está preocupado com a produtividade da sua pecuária, mas em manter aquela área aberta para, no futuro, conseguir vender”, conclui Rodrigues.

Segundo ele, esse tipo de situação é diferente do pecuarista da Amazônia que, realmente, tem na criação de gado a sua fonte de renda. “Esses estão focados na atividade e fazem tudo com nota, pagando imposto”.

Onde está o problema

 

A diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) Ane Alencar diz que, de fato, o desmatamento na Amazônia é mais recorrente em terras públicas invadidas ilegalmente do que em propriedades privadas.

Mas o grande nó de tudo isso é que toda a cadeia de produção de carne, desde os produtores regulares até os frigoríficos, acaba contribuindo com o desmatamento quando compra animal de áreas desmatadas.

 

E essa é uma situação recorrente. Tanto é que, em 2009, o Ministério Público Federal (MPF) fechou acordos com frigoríficos da Amazônia exigindo que eles parassem de comprar bois de áreas desmatadas. A iniciativa foi criada após a divulgação de um relatório do Greenpeace chamado “Farra do boi na Amazônia”, que denunciava a situação.

Esses acordos, contudo, são voluntários e o Brasil ainda não tem uma política pública de rastreabilidade da cadeia bovina para fins ambientais.

De 2009 para cá, entretanto, o mercado de carne, principalmente os frigoríficos, tem tentado se adequar, diante de pressões grandes supermercados, restaurantes e importadores de carne, como a União Europeia, que irá proibir a entrada de produtos com desmatamento a partir de 2025.

É por isso que nos últimos 15 anos, frigoríficos e ONGs brasileiras vêm criando formas de rastrear a origem da carne, mas, até o momento, só têm conseguem monitorar, com precisão, seus fornecedores diretos, ou seja, as fazendas que vendem boi diretamente a eles.

“Às vezes, o animal passa por quatro, cinco fazendas antes de chegar na propriedade que vai vender para o frigorífico. Então a gente só está olhando para a última fazenda. A gente precisa olhar para as demais”, conta o procurador do MPF Daniel Azeredo.

 

Essas outras propriedades são conhecidas como fornecedores diretos.

g1 visitou um pecuarista da Amazônia que está implementando um sistema de rastreabilidade individual do seu rebanho com chips e brincos, uma forma que pode controlar melhor as compras das fazendas e frigorífico (veja aqui).

Boi ‘pé duro’ e carne cara

 

A pecuária na Amazônia começou no século 17, quando colonizadores portugueses levaram, para a região, cabeças de gado oriundas da Península Ibérica. Os animais entraram por Belém (PA) e foram se espalhando para outras regiões, como a Ilha do Marajó, que se tornou o maior centro pecuário da Amazônia até os anos de 1960.

Na época, o gado criado na região era o crioulo, também conhecido como “pé-duro”, justamente por sua carne não ser nada macia. Além disso, ele levava até 10 anos para ser engordado – hoje se engorda um boi em três anos.

Por esses motivos, os estados da Amazônia tinham que comprar carne de outras regiões do país, conta Moacyr Bernardino Dias Filho, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na unidade Amazônia Oriental.

“A carne bovina vinha de avião. Eles eram conhecidos como ‘aviões carniceiros’ e vinham do antigo Goiás [Tocantins]. Então, imagina o preço dessa carne”, diz o pesquisador.

 

Nesse período, as pastagens eram naturais, ou seja, não eram plantadas.

Pecuária cresceu na ditadura

 

A partir dos anos de 1960, a pecuária começou a se desenvolver mais intensamente na Amazônia, com a inauguração da rodovia Belém-Brasília, em 1959, impulsionando a criação de gado em áreas próximas da nova estrada.

Segundo Dias Filho, essas fazendas eram de pequena escala, pois muitas não tinham recursos para aumentar as pastagens, situação que começa a mudar em 1966, quando o governo militar implementou a Operação Amazônia, uma política pública para atrair investidores para a região.

A diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) Ane Alencar pontua que, nesta época, a Amazônia foi vista pelo governo como um “inferno verde”, uma terra “que tinha que ser ocupada e desmatada” sob o risco de ser “invadida” por estrangeiros.

“A Operação Amazônia oferecia muitas benesses para os empreendedores: juros praticamente negativos nos empréstimos e diminuição de imposto de renda”, pontua o pesquisador da Embrapa.

 

Para ajudar a gerir a operação, os militares criaram, no mesmo ano, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), além do Banco da Amazônia, para administrar os recursos dos empréstimos.

Nesse contexto, a criação de gado se destacou. “Mais de 50% dos projetos que a Sudam recebia eram de pecuária. Os empreendedores que vieram para cá eram de São Paulo, Minas Gerais e outros estados com forte tradição pecuária”, destaca Dias Filho.

 

“Eles chegaram em uma região sem infraestrutura de estradas, de energia elétrica, de saúde ou de qualquer outro tipo. E optaram pela pecuária. Por quê? Porque a pecuária exige menos recursos humanos e menos tecnologia por área”, conta.

“Voce chega numa área, derruba floresta, queima, pega o avião e joga semente. Depois vem com o caminhão, coloca o gado e vai embora. Depois de um tempo, você volta e recolhe os animais que a onça não comeu e tu ganha dinheiro”, detalha.

Já o plantio de qualquer alimento exige uma preparação maior do solo, como adubação e uso de defensivos. “Plantar seringueira, plantar dendê, exige que você, pelo menos, esteja na área tomando conta”, diz.

 

Vale destacar que este período foi marcado também pela entrada, na Amazônia, do boi zebuíno, que tem uma carne de mais qualidade. Além disso, as pastagens passaram a ser plantadas.

Pastos começaram a degradar

 

A expansão da pecuária na Amazônia, portanto, deu início a um processo de desmatamento intenso do bioma que foi estimulado pela degradação das pastagens.

Isso porque os pecuaristas começaram a perceber que os pastos perdiam qualidade depois de três anos de uso pelos bois. Ou seja, o capim não crescia tão bem e plantas daninhas avançavam sobre o local.

“E, então, o que se fazia? Com a abundância de terras e dinheiro fácil, se abandonava aquelas áreas, se partia para uma nova área de floresta e começava tudo de novo. Então, criou-se um estigma – correto para a época – de que a pecuária era uma atividade danosa e improdutiva ao meio ambiente”, afirma Dias Filho.

Programa Pró-pasto

 

Foi nesse contexto que a Embrapa começou a estudar as causas da degradação do solo e a buscar soluções. Em 1976, a estatal lançou o programa Pró-pasto, com experimentos nos municípios paraenses de Paragominas e Marabá, além de cidades de Roraima, Rondônia, Amazonas e Acre. “Foi um projeto imenso”, lembra Dias Filho, que fez parte da equipe.

Por meio do Pró-Pasto, pesquisadores desenvolveram capins mais produtivos e técnicas de recuperação e adubação de pastagens, que começaram a ser aplicadas por alguns produtores rurais a partir da segunda metade dos anos de 1980.

“Começou a haver uma mudança de mentalidade porque cerca já estava topando com cerca. Então, eu não podia mais abandonar uma área e partir para outra porque já tinha outro dono do lado”, afirma o pesquisador.

 

Além disso, aumentou a pressão governamental e externa em termos de meio ambiente. Então, o produtor se sentiu compelido a aumentar a sua produtividade [ou seja, a produzir o mesmo ou mais em menos terra]”.

Produzir mais em menos terra

 

Dias Filho considera que a pecuária começou a passar por uma “profissionalização”, que vem se desenvolvendo gradativamente até hoje, mas com uma diferença.

Se, a partir da metade dos anos de 1980, recuperar pastagem passou a ser uma preocupação, a partir dos anos 2000, aumentou o interesse dos produtores de impedir a degradação do solo.

“E isso por quê? Porque custa caro errar. Veja: para recuperar uma pastagem em degradação, eu gasto 3 vezes mais do que para manter uma pastagem saudável. Já para recuperar uma pastagem totalmente degradada, eu gasto 5 vezes mais”, diz.

 

Para Dias Filho, a tendência da pecuária na Amazônia é produzir mais em menos terra.

“Há uma pressão ambiental. Tem gente vigiando o produtor. O mercado está exigente, não só em qualidade do produto, mas também em origem, se não é oriundo de desmatamento recente”.

 

Segundo ele, o pecuarista da Amazônia tem produzido mais por área do que há 20 anos atrás. “Na Amazônia, o rebanho bovino cresceu 43% mais do que as áreas de pastagem”, pontua, ao citar dados da Embrapa.

Taxas de desmatamento

 

Ane Alencar, do Ipam, pontua que a implementação do Código Florestal, em 2012, foi um grande avanço no combate ao desmatamento.

A legislação obrigou os produtores rurais da Amazônia a preservarem 80% da sua propriedade, enquanto os 20% restantes ficaram liberados para a produção.

Mas ela ressalta que as mudanças começaram a acontecer antes, no início do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, quando Marina Silva assumiu o Ministério do Meio Ambiente.

“O governo começou a olhar para a especulação e começou a tirar terras do mercado ilegal, a criar unidades de conservação, demarcar terras indígenas”, conta.

Segundo ela, esse contexto explica as quedas da taxa de desmatamento da Amazônia Legal a partir 2005 e, posteriormente, a sua estabilização, de 2012 a 2018.

O desmatamento, contudo, voltou a subir em 2019. “No primeiro ano do governo [de Jair] Bolsonaro, houve uma explosão de ocupação e desmatamento em terras públicas. E isso aconteceu por um enfraquecimento dos órgãos fiscalizadores”, diz Ane.

A trégua veio em 2023, quando a taxa de desmatamento da Amazônia caiu 36,7%. Segundo Ane, a isso ocorreu por causa de uma retomada dos esforços de fiscalização.

“Como a vasta maioria do desmatamento na região tem evidências de ilegalidade, quando o risco de ser pego, penalizado ou mesmo de não conseguir se beneficiar do desmatamento, o desmatamento tende a cair”, reforça Tasso Azevedo, Coordenador Geral do MapBiomas.

Fonte: G1.

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