Microcrédito: oportunidade e redenção para muitos empreendedores

Você iria ao banco para tomar R$ 500 emprestados? Pode parecer pouco, mas, para muita gente, é o valor necessário para dar início a um negócio e, assim, sair da lista do desemprego ou da informalidade. A pernambucana Monique Silva, por exemplo, só precisou de pouco mais do que isso para empreender. Quando conseguiu o microcrédito, abriu uma loja de moda íntima para tirar a mãe do comércio informal do Centro do Recife. E a empreitada deu tão certo que, hoje, elas faturam R$ 10 mil por mês. “Foi o que mudou nossa vida”, diz a empreendedora, que, com sua história, mostra porque o governo voltou os olhos para o microcrédito e promete expandir esse conceito no Brasil.

Financiamento de pequeno valor concedido a juros moderados para pessoas de baixa renda que querem investir em um negócio, o microcrédito é uma invenção asiática que chegou ao Brasil no fim da década de 1990 e aqui foi rebatizado de “microcrédito produtivo orientado”. É que, ciente da dificuldade que muitos brasileiros têm em lidar com o dinheiro, a legislação nacional alia a concessão do microcrédito a noções de educação financeira, para que os microempreendedores saibam aplicar bem esse recurso. O chamado Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO) ainda fixa em R$ 15 mil o limite desse financiamento, mas, a despeito de histórias como a de Monique, ainda beneficia uma parcela muito pequena da população brasileira.

Dados do Banco Central (BC) revelam que, no fim de 2018, havia R$ 3,3 trilhões de crédito no sistema financeiro nacional. O microcrédito, no entanto, recebeu apenas R$ 5,7 bilhões desse montante. Isso significa que somente 0,17% do crédito nacional destinava-se especificamente aos 52 milhões de pequenos empreendimentos brasileiros – negócios que, neste momento de retomada lenta da economia e desemprego elevado, despontam como a única opção de subsistência de milhões de brasileiros e, por isso, tornaram-se responsáveis por 45% dos empregos formais e 22% da massa salarial do País segundo o Sebrae.

Microcrédito brasileiroMicrocrédito brasileiro – Crédito: Arte/Folha de Pernambuco

“O crédito ainda privilegia o consumidor de alta renda no Brasil. O microcrédito é uma antítese disso porque foca nos produtores de baixa renda. É um programa transformador que ajuda a economia a crescer a partir dos pequenos negócios e é importante, sobretudo, hoje em dia”, pontuou o economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Marcelo Néri, que há mais de dez anos estuda a aplicação desse conceito no Brasil e ressalta: o microcrédito ainda sofre outra restrição no País porque praticamente se limita ao Nordeste.

Ainda segundo o Banco Central, dos R$ 5,7 bilhões de microcrédito existentes no País no fim de 2018, R$ 4,06 bilhões estavam no Nordeste, sendo R$ 415 milhões em Pernambuco. “O microcrédito atende pessoas pobres, que normalmente estão no setor informal e, por isso, não têm renda assegurada nem histórico cadastral no sistema financeiro. Por isso, os bancos têm resistência de atender a esse público”, explicou o superintendente de microfinanças do BNB, Alex Araújo, contando que o banco sediado em Fortaleza recebeu a ajuda do Banco Mundial para implementar o produto no Brasil e, por isso, segue na contramão desse movimento. “O projeto começou em 1998, quando o Brasil conquistou o controle da inflação e passou a discutir estratégias de combate à desigualdade e à pobreza”, contou Araújo.

Desde então, o BNB já financiou R$ 61,4 bilhões a 5,2 milhões de empreendedores do Nordeste e do norte dos estados de Minas Gerais e Espírito clientes. “Por isso, é o terceiro maior banco de microcrédito do mundo, atrás apenas do Grameen Bank de Bangladesh e de um banco da Índia”, revelou Araújo, orgulhoso de poder fazer essa comparação. Afinal, o Grameen Bankpertence ao criador desse conceito – o economista e professor indiano Muhammad Yunus, que, na década de 1970, começou a oferecer empréstimos de pequeno valor, inicialmente com recursos próprios, para ajudar os pequenos produtores rurais de Bangladesh que viviam na pobreza e não tinham acesso a nenhum serviço bancário e teve tanto sucesso nessa missão que ganhou até o Nobel da Paz em 2006.

“Yunus percebeu que as pessoas podiam crescer e ganhar autonomia financeira com pequenos financiamentos”, explicou Araújo, admitindo que, com a ajuda de Marcelo Néri, o BNB também constatou essa afirmação no Nordeste. É que o economista da FGV avaliou os dez primeiros anos de operação do Crediamigo e percebeu que 60% dos empreendedores atendidos pelo programa saíram da linha de pobreza, o que rendeu ao BNB o título de Gramenn Brasileiro. “É uma porta de entrada para o mercado formal, porque, além de transferir renda, ajuda a usar essa renda”, explicou Neri, contando que esse conceito de microcrédito orientado amplia em pelo menos 10% o lucro dos pequenos negócios. “Os pequenos precisam de dinheiro para alavancarem seus negócios, inclusive como capital de giro. Por isso, o microcrédito é muito importante para esses empreendedores”, confirmou o analista do Sebrae, João Albuquerque.

“Cada R$ 1 de microcrédito gera R$ 4,50, pois 70% desse dinheiro gira na economia local”, acrescentou o superintendente do programa de microfinanças do Santander, Tiago Abate, que também tem estudado o assunto junto com a Organização das Nações Unidas (ONU) para ampliar a participação do banco espanhol nesse mercado, inclusive com o lançamento de novos produtos, como os microsseguros. “Existem 50 milhões de empreendedores informais no Brasil, mas o microcrédito atende cinco milhões. Isso significa que 45 milhões de pequenos negócios estão se virando de um algum jeito. É preciso, então, atuar nessa faixa, pois o Brasil precisa de um novo ciclo de prosperidade”, argumentou Abate, orgulhoso de dizer que, apesar de trabalhar nesse segmento há apenas dois anos, o Santander já conta com milhares de histórias como a de Monique.

“A gente vendia calcinha na Rua das Calçadas quando conheceu a agente do Santander. Foi com a ajuda dela que conseguimos adquirir uma loja e ampliar o nosso negócio. Por isso, renovo o contrato a cada seis meses para continuar investindo”, contou Monique, que no início do ano fez um empréstimo para reformar a loja e agora vai tomar outro financiamento para poder diversificar a vitrine, levando roupas femininas para junto das roupas íntimas que há anos garantem o sustento da sua família. “É incrível pensar que nós levávamos sol e chuva na rua e agora temos um lugar para ficar, que está crescendo”, orgulha-se a empreendedora de apenas 24 anos, ao lado da mãe Lucilene Silva, que dá nome ao negócio da família: Lu Moda Íntima.

Prioridade bancária
O sucesso de histórias como a de Monique fez com que o microcrédito entrasse na lista de prioridades dos bancos e do governo brasileiro neste momento em que a economia nacional clama por um novo ciclo de crescimento. E é com base em experiências bem sucedidas como a do Banco do Nordeste (BNB) que o Governo Federal quer ampliar os pequenos financiamentos produtivos no País.

O assunto entrou na pauta nacional no início deste ano, quando o novo presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), Pedro Guimarães, revelou que expandir o microcrédito era a meta da sua gestão. “Eu não me conformo de ter pessoas tomando dinheiro a 15%, 20%, 22% ao mês. Tenho certeza que ninguém se conforma. […] Por que não temos bancos emprestando para pessoas carentes a 2%? Por que não podemos construir uma operação de 30 milhões de pessoas?”, questionou Guimarães, ao tomar posse no Palácio do Planalto.

Logo depois, o tema voltou ao noticiário. Dessa vez, nos discursos do novo presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, que defendeu o microcrédito como um agente de inclusão financeira ao ser sabatinado no Senado. “O microcrédito permite o contato prático da população com conceitos financeiros em um ambiente simplificado e de risco controlado”, argumentou Neto, que falou novamente sobre o programa na sua posse.

“Experiências internacionais demonstram o sucesso dessas políticas. Por isso, iremos promover grupos de estudos junto a participantes do mercado e à sociedade civil para que possamos nos espelhar nos exemplos bem sucedidos e buscar adequá-los à realidade de nosso país e de cada uma de nossas regiões”, afirmou o novo presidente do BC, que, com isso, promete olhar para a experiência do Nordeste – região que detém 70% do microcrédito brasileiro.

O presidente da Caixa também já adiantou: quer fazer uma parceria com o BNB para poder levar esse programa para o resto do Brasil. “Tivemos uma reunião no Ministério da Economia para apresentar a operação e uma missão em conjunta com a Caixa no Peru e na Colômbia, onde o microcrédito representa 30% do crédito do sistema bancário“, revelou o superintendente de microfinanças do BNB, Alex Araújo, lembrando que, no Brasil, essa participação é de apenas 0,2%.

“Esse conceito precisa ser expandido. E é por isso que o Banco Central tem interesse em estimular o microcrédito”, afirmou Araújo, dizendo que, além de impulsionar o empreendedorismo e movimentar a economia, o microcrédito é visto por Roberto Campos Neto como um importante agente de inclusão financeira. Afinal, diferente dos demais produtos bancários, não se nega a atender quem não tem histórico de crédito. E, por isso, muitas vezes é o que leva os brasileiros das classes mais baixas para dentro do sistema financeiro. Monique, mais uma vez, é uma prova disso. É que a empreendedora não tinha cartão nem conta bancária antes de conhecer omicrocrédito. Agora, porém, usa conta-corrente e cartão de débito e ainda aceita compras no crédito na loja que abriu no Centro do Recife.

Ampliação
Não é só levando essa experiência para fora do Nordeste, contudo, que o Banco Central quer ampliar o microcrédito no País. Regulador do sistema financeiro nacional, o banco também promete elevar os limites e flexibilizar a oferta desse produto.

“Os limites de enquadramento dos microempreendedores serão revistos, bem como o valor máximo das operações”, confirmou o BC. Em nota enviada à reportagem, o banco explicou que precisa regulamentar os avanços propostos pela Lei 13.636 de 2018, que libera o uso de novas tecnologias no acompanhamento do microcrédito, para que a medida entre em vigor e permita e entrada de empresas digitais como as fintechs nesse segmento. Uma novidade, que, para o setor de tecnologia, pode facilitar o acesso e baratear esse financiamento.

“O microcrédito tradicional tem como base um agente de crédito para prospectar e acompanhar o cliente. Mas as fintechs, por meio da tecnologia, conseguem substituir e encontrar outras formas de atuar nesse nicho, o que possibilita um crédito mais barato e menos burocrático”, argumentou o empreendedor Fábio Takara, que fundou a Firgun – associada da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs ) que quer atuar nesse segmento.

Quanto aos limites, o BC já revelou, em consulta pública lançada no ano passado, a intenção de estender de R$ 15 mil para R$ 21 mil o teto do microcrédito. Para atender categorias como os motoristas de aplicativo, que muitas vezes financiam um carro para poder trabalhar, o banco ainda estuda liberar o crédito para clientes que têm um saldo devedor de até R$ 90 mil e não mais R$ 40 mil. O faturamento anual desse empreendedor, por sua vez, deve continuar em R$ 200 mil. Afinal, esse valor já foi redefinido em 2018 para atender os clientes que viram o faturamento anual de R$ 120 mil crescer com o uso do microcrédito.

Lógica diferenciada
Por atender as classes desbancarizadas, o microcrédito obedece a uma lógica bem diferente da dos demais produtos financeiros. É a concessão de crédito através de grupos solidários, em que cada cliente é parceiro e avalista dos demais. Grupos que formam uma verdadeira rede de empreendimento e solidariedade em comunidades como a de Nova Descoberta.

Nesta periferia da Zona Norte do Recife, o grupo solidário do microcrédito teve início quando Silvio Oliveira aceitou a proposta do Banco do Nordeste (BNB) e financiou R$ 1 mil para investir no fiteiro que abriu na frente de casa quando se viu desempregado. “Eu precisava de dinheiro para comprar mais produtos. E, como não tinha garantia, conversei com minha tia que é manicure e com um amigo que faz bolo para formarmos um grupo”, explicou o empreendedor, que sempre está de olho nesses outros negócios para garantir a adimplência e a renovação dos empréstimos do seu grupo.

Agente de crédito do BNB, Vanessa Cavalcanti explicou que, quando um integrante do grupo não paga a parcela, o restante da equipe arca com a despesa. É uma forma, então, de o banco garantir o pagamento dos empréstimos e estimular a cooperação entre os empreendedores. “Nós nos ajudamos e, dessa forma, meu negócio já cresceu 30%”, confirmou Silvio, que, hoje, é dono de um dos bares e karaokês mais frequentados de Nova Descoberta e acaba de chamar mais uma empreendedora para o seu grupo solidário. É a pedagoga Márcia Souza, que, depois de anos dando aula de reforço no terraço de casa, acaba de pegar R$ 1 mil emprestados para dar início ao projeto de abrir um cursinho pré-vestibular.

Após anos dando aula de reforço no terraço de casa, Márcia Souza acaba de pegar R$ 1 mil emprestados para dar início ao projeto de abrir um cursinho pré-vestibular

Após anos dando aula no terraço de casa, Márcia Souza pegou R$ 1 mil emprestados para iniciar projeto de um cursinho pré-vestibular – Foto: Arthur de Souza/Folha de Pernambuco

“É uma metodologia simples e que dá certo. Agora mesmo, vamos renovar nosso crédito e, com isso, vou poder ampliar e formalizar o meu negócio”, comentou Jairo Carvalho – o amigo de Silvio que faz bolo e colocou até a filha, que vende roupas na internet, no crédito solidário. “O juro é baixo. Vale a pena”, explicou Jairo, dizendo que seus empréstimos duram cerca de seis meses e são taxados com juros de 2% ao mês.

É por conta disso que 95% das operações de microcrédito do BNB acontecem por meio de grupos solidários, cujo tíquete médio é de R$ 2 mil e a inadimplência é de apenas 1,3%. “É menos da metade da taxa média de inadimplência do varejo bancário”, confirmou Abate, que também levou o modelo de grupos solidários para o programa de microcrédito do Santander, o Prosperar, que promete financiar R$ 2 bilhões só neste ano, consolidando-se como o segundo maior programa desse tipo do Brasil.

“É uma metodologia simples e que dá certo

“É uma metodologia simples e que dá certo”, comentou Jairo Carvalho – Foto: Arthur de Souza/Folha de Pernambuco

Em Pernambuco, o modelo ainda será replicado pela Agência Estadual de Fomento (Agefepe). Afinal, ampliar o microcrédito também foi uma das promessas de campanha do governador Paulo Câmara. “Queremos beneficiar 40 mil pessoas nos próximos anos”, informou o presidente da Agefepe, Marcelo Barros, que vai precisar de aproximadamente R$ 40 milhões para implementar esse plano. “Estamos negociando com a Secretaria da Fazenda. O aporte vai acontecer e o microcrédito vai contribuir com a recuperação da economia e do emprego em Pernambuco”, prometeu Barros, que também fez uma parceria com o Sebrae para oferecer mais mecanismos de orientação financeira aos empreendedores pernambucanos.

Assim, o microcrédito vai se ramificando, como Muhammad Yunus já havia recomendado ao Brasil. Em 2013, o criador do Grameen Bank visitou o Brasil e foi enfático ao dizer que “dar dinheiro para os pobres não é uma solução para a miséria, mas uma forma de mascarar o problema”. Na ocasião, ele explicou que, quando oferece programas como o Bolsa Família, o governo garante o sustento dos pobres, mas não promove a sua independência financeira. O Nobel da Paz concluiu, então, que mais que investir em projetos assistencialistas, o Brasil precisa de iniciativas como o microcrédito, que ofereçam o capital e o conhecimento necessário para que as famílias de baixa renda tomem as rédeas da sua vida.

Passo a passo do microcréditoPasso a passo do microcrédito – Crédito: Arte/Folha de Pernambuco

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